segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

O trabalho de Humberto Maturana e Francisco Varela




  (Por: Edla M. F. Ramos)

1. Introdução

Humberto Maturana e Francisco Varela desenvolveram um trabalho transdisciplinar centrado no propósito de entender a organização do sistemas vivos com relação ao seu caráter unitário. Para tal, foi preciso que esses pesquisadores levassem em conta os principais desafios que esse entendimento impunha, quais sejam: entender a natureza autônoma da organização biológica e entender como a identidade pode ser mantida durante a evolução que gera a diversidade. Os autores não fazem, pois não são necessárias, distinções sobre nenhuma classe ou tipo de ser vivo, nem descrevem os seus componentes. Apenas explanam quais são as relações que permanecem invariantes entre tais componentes, e que constituem o ser vivo enquanto tal, não importando qual é a sua natureza.

Além de reformular um fenômeno, mostrando como as relações e interações entre seus componentes o geram, como ocorre em toda a explanação, é meta central dos autores (pois têm claro que toda explanação é feita por um observador do fenômeno) distinguir claramente o que pertence ao sistema como constitutivo da sua fenomenologia e o que apenas pertence ao domínio da sua descrição. Esta distinção é uma proposta de atitude epistemológica nova e já demonstrou o quanto é fecunda no próprio trabalho dos seus proponentes.

A abordagem feita é, num certo sentido, mecanicista, pois nenhuma força ou princípio que não esteja no universo físico é invocada. Os seres vivos serão tratados como máquinas, donde os autores precisam responder 'que tipo de máquinas elas são?' e 'qual é a sua fenomenologia, incluindo reprodução e evolução, a partir da sua organização unitária?'. Apesar de mecanicista, a abordagem não é reducionista ou atomista, uma vez que é o caráter unitário do ser vivo que tenta ser compreendido de forma transdisciplinar.

O uso do termo transdisciplinar, ao invés dos termos interdisciplinar e multidisciplinar, é mais adequado para explicar este aspecto do trabalho dos autores, pois, como bem observou Stanford Beer, (no prefácio que escreveu para o livro Autopoiesis e Cognição):
"...se o livro lida com sistemas vivos, então deve tratar de biologia. Se ele diz alguma coisa científica sobre organização, então deve falar de cibernética. Se pode reconhecer a natureza do caráter unitário, deve ser um livro de epistemologia - e também, lembrando a grande contribuição do primeiro autor sobre percepção, deve lidar com psicologia. O livro é indubitavelmente sobre todas estas coisas. Chamaríamos, portanto, esta área interdisciplinar de psicociberbioepistêmica? Faríamos isso se quiséssemos insultar os autores, pois o seu estudo não inter-relaciona disciplinas, ele as transcende. Na verdade, parece que ele as aniquila..." (Beer in Maturana, 1987: 65).
Maturana e Varela desenvolvem uma abordagem em busca de síntese e não de análise e classificação. Segundo estes autores a ciência de hoje teve o seu progresso instrumentalizado por análise e categorização, o que produziu uma visão de mundo difícil de mudar. Nessa visão de mundo os sistemas reais são aniquilados pela própria tentativa de entendê-los, sendo suas relações definidoras(???) perdidas uma vez que não são categorizáveis (???).

Consideram os autores que nenhuma posição ou ponto de vista que tenha alguma relevância no domínio das relações humanas está livre de implicações éticas e políticas. Logo, nenhum cientista pode considerar-se alheio a estas implicações. Tais implicações foram explicitadas pelos autores a partir da resposta à seguinte questão: "as sociedades humanas são ou não são elas mesmas sistemas biológicos? ".

As noções de observador, distinção, unidade, organização e estrutura são os alicerces da teoria de Maturana e Varela. Elas são sintetizadas a seguir.

1.1 O observador

Tudo que é dito é dito por um observador. O observador é um ser humano, portanto, um sistema vivo, e tudo o que se aplica aos sistemas vivos também se aplica a ele. O observador contempla simultaneamente aentidade que ele considera e o universo no qual ela vive. Ele é capaz de operar ou de interagir com a entidade observada e com as suas relações.
Uma entidade é o que pode ser descrito pelo observador, descrever é enumerar as interações e relações atuais ou potenciais da entidade descrita. Isso só pode ser feito se existe pelo menos uma outra entidade distinguível com a qual a entidade descrita pode ser relacionada e interage.
O entendimento da cognição como um fenômeno biológico deve levar em conta o observador como um sistema vivo e o seu papel.

1.2 Unidade

A noção de unidade é fundamental no trabalho destes autores, dado, como já foi dito ao caráter não reducionista da sua abordagem. Eles buscaram entender o ser vivo, não pela enumeração de suas características, mas pela sua organização e seu caráter unitário. A definição dos mesmos para unidade está bem clara na citação abaixo:

"A operação cognitiva básica que nós realizamos como observadores é a operação de distinção. Através dessa operação nós especificamos uma unidade como uma entidade distinta do seu meio ambiente, caracterizamos ambos unidade e ambiente com as propriedades as quais esta operação lhes fornece e especificamos sua diferenciação. Uma unidade assim especificada é uma unidade simples que define através de suas propriedades o espaço no qual ela existe e o domínio fenomenal que ela pode gerar na sua interação com outras unidades." (Maturana, 1980:XIX)

Quando a operação de distinção é aplicada recursivamente sobre uma unidade, os seus componentes podem ser distinguidos, permitindo que ela seja re-especificada como uma unidade composta. Uma unidade pode portanto ser tratada como composta ou simples. No primeiro caso, ela existe no espaço que os seus componentes definem e é através das propriedades dos seus componentes que ela é distinguida. No segundo caso, ela existe num espaço que é definido através das propriedades que a caracterizam como uma unidade simples.

Uma operação de distinção é também a prescrição de um procedimento. Este procedimento separa a unidade distinta do seu meio. Uma distinção é, portanto, uma ação cognitiva, e a unidade especificada existe no domínio cognitivo do observador como uma descrição. Apesar disso, ele especifica no seu discurso um meta-domínio de descrições, pois ele estabelece uma referência que lhe permite falar como se a unidade existisse como entidade separada que ele pode caracterizar denotando as operações responsáveis pela sua distinção.

"Na perspectiva do meta-domínio descritivo, a distinção entre a caracterização de uma unidade e o conhecimento do observador que lhe permite descrevê-la dentro de um contexto, deve ser clara. De fato, conhecimento sempre implica uma ação concreta ou conceitual em algum domínio, e o reconhecimento do conhecimento sempre implica um observador que contempla a ação de um meta-domínio." (Maturana, 1980:XXII)

1.3 Organização e estrutura

Conta-se uma história, cujo inventor teria sido Einstein, que analisa o ato de descrição dos objetos e seres existentes, mais ou menos assim: “se formos descrever um relógio, com certeza iremos encontrar mais de 20 explicações diferentes e igualmente válidas para o mesmo, talvez nenhuma delas corresponda verdadeiramente àquilo que o relógio é”. O ato de descrição de um fenômeno cria um domínio fenomenológico novo, o domínio da descrição do fenômeno. Maturana e Varela alertam que é preciso fazer uma separação entre estes dois domínios. Os conceitos de organização e estrutura abordam esta questão.

organização de uma unidade ou sistema é o conjunto de relações que estão necessariamente presentes no sistema e que lhe definem a existência. Uma cadeira por exemplo pode ser definida a partir da descrição das relações entre braços, pernas, assento e encosto. Algumas coisas são difíceis de descrever, por exemplo, a classe das 'boas ações', mesmo que tenhamos um razoável entendimento do que seja uma boa ação.

De outra maneira, pode-se dizer que "...as relações entre os componentes que definem uma unidade composta (sistema) como uma unidade composta de um tipo em particular, constituem a sua organização" (Maturana, 1980:XIX). Nesse caso os componentes são vistos somente enquanto participantes na constituição da unidade, nada precisando ser dito sobre suas propriedades específicas, que não sejam requeridas para a realização do sistema. "Os componentes atuais ( com todas as suas propriedades incluídas) e as atuais relações existentes entre eles, que realizam concretamente o sistema como um membro em particular da classe de unidades compostas a qual ela pertence pela sua organização, constituem a sua estrutura." (Maturana, 1980:XX).

O que define um sistema é, portanto, o conjunto de relações existentes entre os seus componentes, independentemente destes componentes. O conjunto de relações que define um sistema como uma unidade é a suaorganização. Já o conjunto de relações efetivas entre os componentes presentes numa máquina concreta dentro de um espaço dado, constituem sua estrutura. Dessa forma, a organização de uma máquina nada tem a ver com a sua materialidade, é claro que ela implica uma matéria: uma máquina de Turing, por exemplo, é uma certa organização mesmo que pareça haver um fosso intransponível entre a forma como é definida uma máquina de Turing e suas realizações (elétrica, mecânica etc.).

A organização de um sistema pode se efetivar a partir de muitas estruturas diferentes, na medida em que, o conjunto de relações e propriedades que a definem são um subconjunto daquelas que definem uma estrutura. Por exemplo, o conjunto de relações que definem a realização de um carro, pode ser verificado concretamente a partir de muitas estruturas diferentes. O mais importante nisso é que uma mesma organização pode ser percebida por um observador como pertencente a diferentes classes de unidades compostas, pois ele poderá abstrair subconjuntos diferentes de relações e propriedades em diferentes estruturas pela qual ela se efetive. Mais ainda, para que uma organização possa permanecer invariante, enquanto realizável por diferentes estruturas, existem limites para as variáveis dessa estrutura, que se ultrapassados acarretariam a mudança da organização.

A noção de finalidade de um sistema não é uma característica da sua organização, mas sim do domínio do seu funcionamento, ou seja, ela remete à descrição de uma máquina a um domínio mais vasto que o sistema ele mesmo. Na verdade, a noção de finalidade é usada nas descrições dos sistemas em geral, pois todos os sistemas construídos pelo homem têm uma finalidade específica, e a mesma diminui em muito a nossa tarefa explicativa e descritiva numa explanação. Donde, esses conceitos de finalidade, de objetivo ou de funcionamento são introduzidos pela necessidade de comunicação dentro do domínio do observador. Eles não servem para nada na caracterização de uma classe particular de organização. Um carro, mantida a sua integridade física (donde, mantido o conjunto de relações entre os seus componentes, e, portanto, mantida a sua organização) não deixará de ser um carro se lhe for dada uma finalidade diferente. Por exemplo, ao invés do transporte de objetos e pessoas, um carro poderia servir para escorar uma parede, nem por isso deixaria de ser um carro.

Na definição de organização feita acima, quando a condição de teleonomia (necessidade de um fim ou objetivo) é retirada da descrição da organização de um sistema, os autores imprimem a principal marca da sua perspectiva epistemológica. A exclusão da noção de finalidade na descrição da organização de um sistema é o divisor de águas entre o domínio fenomenológico descrito e o domínio da sua descrição.

2 O ser vivo e a sua organização

A grande questão que norteou o trabalho de Maturana e Varela era "o que é a vida?" ou "o que é próprio dos sistemas vivos desde a sua origem, e permanece invariante durante as suas sucessivas gerações?" A resposta para tal questão no entender dos autores estava implícita na resposta de outra: qual é a organização do ser vivo?

O ser vivo pode ser facilmente reconhecido quando é encontrado. Mais difícil do que reconhecê-lo é dizer o que ele é. Suas características tais como reprodução, hereditariedade, crescimento, irritabilidade, adaptação e evolução, desenvolvimento e diferenciação, seleção natural, e assim por diante, podem ser facilmente enumeradas. Mas quando é que esta lista de atributos será suficiente para definir de forma clara o ser vivo?

Maturana e Varela têm claro que o ser vivo é um tipo especial de máquina, e a partir do paradigma epistemológico que adotam, cabe-lhes então definir de que tipo de máquina trata-se, a partir da sua organização. No entender dos mesmos, seria muito ingênuo dizer apenas que máquinas são sistemas concretos de hardware, que se definem pela natureza dos seus componentes e pelo propósito para o qual foram feitas, pois neste caso, nada teria sido dito sobre a natureza da sua organização.

Para Maturana e Varela os seres vivos são um tipo particular de máquinas homeostáticas, que eles denominam de autopoiéticas. "Existem sistemas que mantém alguns de seus parâmetros, seja imóveis, seja ligeiramente flexíveis no interior de um intervalo restrito de valores. É sobre esta constatação que repousa a noção fundamental de estabilidade ou de coerência de um sistema. " (Wiener apud Varela, 1989:45). Nos sistemas em que o mecanismo responsável pela estabilidade é interno ao mecanismo da máquina, ou seja, nos quais as fronteiras são definidas pela própria organização da máquina tem-se um tipo especial de máquinas chamadas de homeostáticas.

A idéia de autopoiesis é uma expansão da idéia de homeostase em duas direções importantes:
  • ela transforma todas as referências da homeostase em internas ao sistema;
  • ela afirma ou produz a identidade do sistema.
Ou seja, esses sistemas produzem a si próprios, dessa forma produzem a sua identidade distinguindo-se a si mesmos do seu ambiente. Daí o termo autopoiéticos, do grego auto (própria) e poiesis(produção).

Um sistema autopoiético é organizado como uma rede de processos de produção de componentes que:

a) regeneram continuamente, pela sua transformação e interação, a rede que os produziu; e que,
b) constituem o sistema enquanto uma unidade concreta no espaço onde ele existe, especificando o domínio topológico onde ele se realiza como rede.

Dessa forma uma máquina autopoiética é um sistema homeostático onde a invariante fundamental é a própria organização. A organização por sua vez é determinada pelas relações, não entre os seus componentes, mas entre os processos de produção desses componentes. Portanto para classificar um sistema como autopoiético é necessário ter capacidade de dar uma significação precisa aos processos de produção dos componentes e de geração de uma fronteira, pois é na geração da fronteira que se produz a identidade.

Este tipo de organização tem conseqüências evidentes:
(i) máquinas autopoiéticas são autônomas;
(ii) máquinas autopoiéticas têm individualidade;
(iii) máquinas autopoiéticas são unidades que se caracterizam justamente a partir da própria organização autopoiética; e,
(iv) máquinas autopoiéticas não têm entradas ou saídas.
Todas estas conseqüências serão detalhadas neste texto, em outros momentos.

A noção de autopoiesis é necessária e suficiente para definir um sistema vivo. É óbvio que se for aceito que os seres vivos são máquinas, então eles são máquinas autopoiéticas. Não é tão aparente, contudo, o inverso, ou seja, que toda máquina autopoiética é um sistema vivo. A dificuldade em se perceber este fato deve-se, de acordo com os autores, a razões ligadas ao domínio da descrição, são elas: (a) Máquinas em geral são artefatos feitos pelo homem, com propriedades conhecidas e, pelo menos conceitualmente, perfeitamente previsíveis. (b) Enquanto a natureza do ser vivo for desconhecida fica difícil identificar quando um sistema é ou não vivo. (c) A crença que observação e experimentação, sem nenhum recurso à análise teórica, sejam suficientes para revelar a natureza do ser vivo.

Por mais chocante que possa parecer, os fenômenos da reprodução e da evolução não são constitutivos da definição do ser vivo a partir do seu caráter unitário. É preciso lembrar que toda unidade para ser reproduzida precisa já estar constituída, e também que muitos seres vivos não são capazes de reproduzir-se (uma mula, por exemplo). O fato de a reprodução requerer uma unidade a ser reproduzida não deve ser entendido como uma questão de precedência trivial, mas como um problema operacional, sobre a origem do sistema vivo e sobre a natureza do seu mecanismo de reprodução. Este mecanismo é, nos sistemas autopoiéticos, peculiar aos mesmos. Trata-se de um mecanismo no qual uma unidade produz uma outra com a mesma organização que a sua, enquanto produz a si própria, num processo de auto-reprodução.

2.1 Autopoiesis e autonomia

Para Varela (1989) importa analisar, quando um cão vira a cabeça na sua direção "para poder vê-lo melhor", sobre que bases se tenta imputar uma intenção ao cão. Para o autor, nesse comportamento, o cão recebe as informações que provém do seu ambiente, não como instruções, mas como perturbações que ele interpreta e submete a algum mecanismo de equilibração interna. É esta propriedade particular, que ele chama de autonomia, que será melhor definida a seguir.

Uma das características mais evidentes dos seres vivos é a sua autonomia. A questão da autonomia tem estado até então envolvida numa aura de mistério. Maturana e Varela propõem que o mecanismo que torna os seres vivos autônomos é a autopoiesis. A vida mesmo se especificou, dentro do domínio molecular, a partir de um processo desse tipo, enquanto ela mesmo é um desses processos autônomos. Aqui autonomia tem o sentido usual, ou seja um sistema é autônomo quando é capaz de especificar as suas próprias leis, ou o que é adequado para ele.

A célula é uma unidade que surge de uma sopa molecular a partir da especificação de uma fronteira que a distingue do seu meio. A especificação desta fronteira se faz através da produção de moléculas, que por sua vez necessitam para a sua formação da presença dessa mesma fronteira. Há, portanto, uma especificação mútua, e se esse processo de auto-produção se interrompe, a célula se desintegra. O fenômeno essencial aqui é o seguinte: o fechamento operacional de elementos situados em níveis separados produz um entrecruzamento destes níveis para constituir uma nova unidade. Quando o entrecruzamento cessa, a unidade desaparece. A autonomia surge desse entrecruzamento. A origem da vida não é o único exemplo dessa lei geral.

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