quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Interpretar e ouvir

Um texto de impacto épico colado pelo Paulo Brabo.

Um mito “rompido” é um mito que foi desmascarado; admite-se agora que é um mito, não sendo mais considerado uma fotografia objetiva e verdadeira da natureza última da realidade, nem uma descrição objetiva de como essa ordem veio a existir. Ao contrário, encontra-se agora incluído entre diversas construções possíveis igualmente subjetivas, impressionistas e imaginativas, todas criadas por uma comunidade a partir de suas experiências iniciais, quase rudimentares, com o mundo. De fato, uma vez que os ensinos essenciais do judaísmo são caracterizados e aceitos como míticos, passamos a ter um mito “rompido”.

Não há como superestimar a natureza delicada desse momento do nosso crescimento religioso. Há três possíveis reações diante de um mito rompido. A primeira é rejeitar por completo a noção de mito, reverter para uma compreensão literalista da religião, insistir que todos os seus ensinos são objetivamente verdadeiros, fechar olhos e ouvidos, negar aquilo que aprendemos e voltar ao porto seguro do literalismo.

A segunda é proclamar que o mito rompido está “morto”: efetivamente descartá-lo como “meramente” um mito, como claramente ilusório, como deliberada ficção. Uma expressão típica dessa postura é dizer: se o judaísmo “não passa” de um mito, porque continuar sendo judeu?

A terceira possibilidade é abraçar o mito como “rompido” – e também como “vivo”. A melhor caracterização desse abraço sutil é chamar a experiência de “segunda ingenuidade”, ou “ingenuidade deliberada”. É “ingenuidade”, porque através dela recapturamos o estágio primitivo, quase infantil, de nossa percepção de como o mundo funciona. Mas é uma “segunda” ingenuidade, porque segue-se a um estágio de nosso desenvolvimento em que nossas faculdades críticas nos dizem que esse não é um retrato objetivamente verdadeiro, que Deus não criou o mundo literalmente do modo como relata Gênesis 1, ou que Deus não desceu literalmente sobre o monte para revelar a Torá a nossos ancestrais como relata Êxodo 19-23. Essas histórias não precisam mais ser vistas como literalmente e objetivamente verdadeiras – não precisando, aliás, ser vistas como literalmente ou objetivamente falsas. E é “deliberada”, porque é abraçada através de um ato consciente e ponderado da vontade.

O filósofo francês Paul Ricoeur captura o peso frágil e quase doloroso desse momento:

Isso quer dizer que podemos voltar talvez a uma ingenuidade primitiva? Na verdade não. Em todo modo, algo foi irremediavelmente perdido: o caráter imediato da crença. Mas se não podemos mais viver os grandes simbolismos do sagrado em conformidade com a crença original neles, podemos, na qualidade de homens modernos, almejar uma segunda ingenuidade na crítica e através dela. Em suma, é interpretando que podemos voltar a ouvir.

- O rabino Neil Gillman, expondo e aplicando categorias
   articuladas por Paul Tillich

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